segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O CARTEIRO

Quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com uma carta na mão, ante surpresa tão rude, nem sei como pude chegar ao portão. Lendo o envelope bonito no seu sobrescrito eu reconheci a mesma caligrafia que me disse um dia: estou farto de ti. Porém, não tive a coragem de abrir a mensagem. Porque, na incerteza, eu meditava e dizia: será de alegria ou será de tristeza? Quanta verdade tristonha a mentira risonha que uma carta nos traz. E, assim pensando, rasguei sua carta e queimei para não sofrer mais.”
A última gravação da música acima (Cícero Nunes e Aldo Cabral) foi feita magistralmente pela sempre impecável Na Ozzetti, em Show. E a canção me veio à cabeça com força total ao assistir a um curta-metragem do Jacques Tati, de 1947, chamado Escola de carteiros. Tem no DVD Curtindo Jacques Tati. Recomendo principalmente para quem nunca ouviu falar nele.
Mas vendo o Mon oncle entregando cartas e ouvindo a Na, comecei a pensar no carteiro. Hoje em dia o carteiro virou um mala. Um mala direto. Fico fora de São Paulo e quando volto, depois de um mês, tem um metro de correspondência. Avisos bancários, cobranças, ofertas, convites, convites, convites, mala direta direto. Carta, nenhuma. Carta que eu digo é aquilo escrito à mão, de alguém para alguém, contando as novidades, declarando seu amor, ou encerrando uma aventura. Já não se fazem mais cartas como antigamente. O faz e depois os mails acabaram com a carta.
Veja aquela letra: “Quando o carteiro chegou e meu nome gritou.” Existia uma relação entre o carteiro e o destinatário (que palavra!). Você deve ter lido ou assistido O carteiro e o poeta. Aquilo, sim, era um poeta e um carteiro.
O carteiro fazia parte do nosso imaginário, das nossas esperanças, dos nossos amores. Escreviam-se cartas. Você pegava aquele papel de carta e sabia que ele foi manuseado lá longe, noutra cidade, noutro país por aquelas mãos que o redigiram. E não que digitaram. Era comum algumas cartas chegarem com manchas. Lágrimas que pingavam por emoção ou dor.
E hoje o carteiro é um mala. Oitenta por cento do que ele traz são jogados imediatamente no lixo mais próximo. A cada convite que jogo no lixo, sinto pena do carteiro. Ele caminhou quadras e quadras para me levar aquilo. Mas nada daquilo me emociona. Não recebo mais do carteiro uma comovente notícia de morte. Muito menos uma carta de amor.
Mais malas ainda se tornam os carteiros na época de Natal, com aqueles cartões horrorosos de boas festas e um ano de paz e prosperidade. Desejar isso nos dias de hoje é uma gozação: no mundo e no Brasil. Deviam escrever: que em 2003 você segure todas. E o pior é o “junto aos seus”. Eu nunca sei quem são os meus.
Em época de eleições, o carteiro fica insuportável com aqueles santinhos todos de deputados e vereadores. O mais engraçado é aquilo se chamar santinho e quando você olha para a cara do remetente (que palavra!), de santo não tem picas.
[...]
O carteiro tende a desaparecer da face da Terra dentro de – no máximo – dez anos. Tudo chegará pelo computador. Tudo! Até as malas diretas dos malas cheios de indiretas.
Ninguém mais escreve cartas ao coronel nem ao soldado raso. Ninguém mais tem coragem de escrever num papel o seu amor eterno (ou não) e assinar embaixo. E deixar duas gotas paralelas de lágrimas carimbarem a verdade no papel.
O carteiro está morrendo e com ele muito, mas muito mesmo de um outro mundo. De um mundo mais romântico, é claro. Onde a gente ficava no portão esperando pelo personagem, ansioso, apreensivo, tenso. E, depois de abrir a carta, sorrir ou chorar. É, a emoção não nos chega mais pelas mãos do carteiro e do porteiro.
Como já dizia o poeta lá de cima, “quanta verdade tristonha a mentira risonha que uma carta nos traz.” É, Neruda, já não se fazem mais carteiros nem poetas como na sua época.”

PRATA, Mario. In: O Estado de S. Paulo, 12 fev. 2003, p. D10.

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